segunda-feira, 24 de novembro de 2008

De bar em bar

Quero um bar onde beber minha solidão, um bar como nas telas de Edward Hooper, um bar como na noite estrelada de Vincent van Gogh, um bar sem endereço certo, numa rua sem saída, numa cidade distante, onde ninguém me conheça e saiba meu nome.
Quero que os clientes pensem, ao me ver entrar, que posso ser tudo, que tudo posso ser – traficante de armas, como Rimbaud, bebedor de absinto como Baudelaire, estripador como Jack.
Que me importa? Na solidão da penumbra de um bar, tudo posso, ser é o de menos, parecer é o que se apercebe.
Não quero todas as bebidas do mundo. Me basta um copo qualquer, muitas pedras de gelo, e uma garrafa de uísque ou bourbon. Ao copo basta a transparência – que insisto em saber o que tomo. Às pedras, basta que não tenham sido colhidas entre as neveiras geladas do coração daquela ingrata que, como na canção, me amava e me abandonou. Já à garrafa, que ao menos a mim seja concedida a primazia do lacre, a certeza do inteiro – estou farto de coisas pela metade, aos terços, aos quartos, quintos do inferno.
A propósito, quero um bar onde possa conversar com meus demônios sem que ninguém nos olhe torto, sem que ninguém se levante desconfiado de nossa presença exótica. Quero um bar onde os anjos caídos possam reparar suas asas sem que ninguém os denuncie, enxote, enxovalhe.
Não quero um bar de sorrisos fáceis, de cultura inútil, de cartões de crédito super-hiper-platinum-plus. Quero um bar, de preferência, sem o desfile de carros na porta, sem um guarda-costas na esquina, sem maître, chef, sem palavras em francês a não ser um “je t’aime moi non plus”, na voz de Jane Birkin ou Brigitte Bardot e de Serge Gainsbourg ou... Serge Gainsbourg mesmo, que o homem não tem rival. Um bar, dizia eu, sem talheres de prata, taças de cristal. Quero um bar sem guardanapos de linho, daqueles impecavelmente dobrados como esculturas tristes, um bar sem travertino nos banheiros – que ao menos a eles não lhes seja negada a sujeira dos nossos corpos. E bocas.
Quero um bar onde possa exercitar o silêncio e o esquecimento. Lembrar cansa. Lembrar pode ser terrível. Lembrar é tudo que resta para quem perdeu posse e pose, que uma coisa leva à outra feito o ovo e a galinha.
Quero um bar onde o homem barbado do balcão, cigarro amassado entre os dentes, repita numa voz tenebrosa entrecortada com uma risada idiota: “Se eu disser que foi o galo dizem que é mentira minha”. Ou qualquer coisa idiota assim.
Quero um bar de idiotas autênticos não uma cúpula de idiotas enrustidos camuflados em doses artificiais de testosterona e alcahol. Quero um bar onde a gente beba e se embriague de verdade, onde cadeiras voem, como nos melhores faroestes, onde garrafas sejam quebradas, como nos melhores filmes de gângster, onde homens e mulheres se beijem sem pudor. Como nas melhores histórias de amor.
Quero um bar de homens e mulheres em combustão, um bar de amantes enlouquecidos, um bar onde os ciúmes são derramados sem vergonha, a primeira dose para o santo protetor dos ciumentos, caso exista – e deve haver um, que de ciúmes vive o mundo e a fila de devotos cresce.
Mas, acima de tudo, quero um bar onde a música reine. Em radiolas de ficha, em grupo cigano, em trio de jazz, na voz rouca de um cantor de blues.
Ah, mas que sujeito amargo! – pensou você, doido, ou doida, pra me acompanhar nesse bar, onde, cada um de nós, ao beber individualmente nossa solitária solidão, terminaremos todos por nos fazer alegre companhia.
E, prometo, seremos os últimos a sair, ao raiar do sol de um novo dia.

*

AGRADECIMENTO
A coluna não tem nada a agradecer – mas o sobrescrito sim: a todas e todos que compareceram à Siciliano dia 19 passado, e, por que não, a quem também não compareceu e nem por isso se fez menos presente.

PROSA
“O que impede que nos matemos quando estamos loucos de embriaguez alcoólica é a idéia de que, uma vez mortos, não beberemos mais.”
Marguerite Duras
A vida material
VERSO
“Aqui é um lugar de desamor
Tempo de antes e tempo de após”
T. S. Eliot
“Burnt Norton”

Um comentário:

  1. perfeito, é exatamente isso! se encontrar, por favor, informe o endereço, q também quero um desses.
    mgp

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