terça-feira, 24 de março de 2009

Um poema de Othoniel Menezes

[Publicado em 230309 segunda]

Recebo, por especial atenção de Laélio Ferreira, este poema, quase inédito, de Othoniel Menezes, seu pai.
“Atavismo” foi publicado primeiramente na revista Letras Novas, em setembro de 1925. Infelizmente, este espaço não consegue repetir a formatação original – que, como se verá, é de suma importância. Daí que, hoje, excepcionalmente, não publicaremos os boxes de Prosa e Verso – e rogamos aos diagramadores que possam exibir o melhor possível este, mais que um poema, documento importante da nossa literatura.
Paciência. Servirá ao menos como um tira-gosto para o “Príncipe plebeu – uma biografia de Othoniel Menezes”, que Cláudio Galvão e Laélio Ferreira prometem para logo mais, talvez neste março ainda.
Não é preciso ler as notas de Galvão para perceber, de cara, a semelhança com outro ícone da poesia potyguar, o moderno Jorge Fernandes, pelo uso das onomatopéias e o recurso de “estratégias gráficas” (que infelizmente, como já dito, não foi possível repetir aqui).
Mas é Cláudio Galvão quem chama atenção para o pioneirismo de Menezes, que publica seu poema “moderno” três anos antes de Jorge Fernandes publicar o seu (A República, 15 de março de 1928).
“É necessário ressaltar-se que ‘Atavismo’ foi o primeiro poema moderno a ser publicado no Rio Grande do Norte, após o deflagrar da ‘Semana de Arte Moderna’ de São Paulo, em 1922” – conclui Galvão.


ATAVISMO
Para Jorge Fernandes
I
Tic-tac! Tac-tac!
– Rrac... crac...
Olá, amigo vento, velha alma familiar e chorosa de Cassimiro!
velha gargalhada noctâmbula do salafrário Bocage!
Avejão!... (rrac!)
vulto branco!... (crac!)
Tic-tac...
Ferve, a cem léguas, o mar… uma zelação que desabou no mar!
II
Crac!... Crac!
abriram a minha porta!
Quando chega a hora aziaga e o horror no coração primitivo
do primeiro pastor que viu a primeira estrela no céu, enorme,
tic... tic... o coração é um relógio – tic... tic... tic...!
a hora sem nenhum pavor dos corujões rasgando a mortalha das horas
sobre o sono dos pequeninos,
centos de filisteus com plumagens índias,
carregando uma urna de esmeralda, enflorada de corais e algas,
a cabeça luminosa e gotejante de Gonçalves Dias,
Berram, mudos, epopéias americanas...
Ferve, a duzentas léguas para o Ocidente: o mar!
e foi quando os espectros de todas as poesias
abriram a minha porta!
III
E morri no meu corpo imortal,
e voei pela transparência da noite morta!
Tudo morto!
Para o Ocidente, para dentro da plaga imensa, ferve o mar!
... mas, o meu irmão moinho, acordado ainda, geme no ermo: crac... crac...
Era um mar morto, o mar diferente do mar que referve,
e onde o último romântico, absorto, navegava,
com um santelmo de saudade fátua iluminando a lira grega!
IV
E o meu ágil fantasma,
– rrac... rrac... rrac... –
assustando os burgueses insones,
de tanto ouro honesto e principal na vida,
– canalha cosmopolita, céu dos judeus dos miseráveis! –
tic-tac...
Hora boa dos miseráveis!
V
O meu fantasma arrastando uma braçada fria de horas,
tac... uma! tac... duas! tac ... multiplicando,
vai deixando cair uma hora boa à porta dos miseráveis!
beija um faminto filho de vagabundo que não sabe das horas,
e traz um vagalume, para alumiar dez beijos nos meus filhos ressonando...
VI
Rrac... rac... rac...
abriram a minha porta,
aqueles suaves fantasmas que são os meus pensamentos,
numa eclosão constante de música, dentro de uma noite morta...
VII
Eu estou vivo no meu corpo,
e o meu fantasma sensitivo
radiografa para a estação circular do meu cérebro
– tic... tic... –
todas as impressões musicais das horas que morrem cantando.
E eu sinto no estuário do meu coração
a convergência, a refração
da inquietação comum...
VIII
Tic... tac...
Tictac:
dez!
tac –
onze!
tac –
doze!...
Às constelações mais belas, muito móveis
no mostrador ciclópico da matriz do zodíaco.
so...
no...
ra...
men...
te
gotejam:
tic-tac... tic-tac:
– luz maior que a luz do século,
sobre os páramos dos sertões fetichistas e esquecidos:
a! as reticências de Euclides da Cunha:
o Caçador de Esmeraldas de Bilac!
Tic-tac...
IX
E eu, dentro da cidade que dorme,
vigiada pela vigília inexorável das horas assombradas,
e pelo cão danado do vento sul,
que é um bandido e devasta o peito dos meus irmãos varredores das ruas,
eu estou vivo!
e vejo o FANTASMA!
tic... tac!...
o fantasma!...
crac! crac!...
o fantasma!
dos meus próprios pensamentos.

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