sábado, 6 de junho de 2009

Adivinhe quem vem para o café-da-manhã: Ana Célia Cavalcanti

A convidada de hoje não foi exatamente convidada, ao menos formalmente: é que eu descobri o desabafo da professora universitária Ana Célia Cavalcanti em email que me enviaram sugerindo a publicação no jornal, não necessariamente nesta coluna. Como a autora é irmã do sobrescrito, ela quis evitar qualquer sombra de “nepotismo” não enviando o texto para mim. Mas, como achei-o relevante e como nem só de tapiocas e doces se faz um café-da-manhã, segue o texto, que não tem a intenção de causar indigestão, mas, quem sabe, contribuir para a resolução do problema.

É DESCABIDO, É RETROCESSO OU É PROPOSITAL?
Que tal ir numa festa só para mulheres e encontrar um marido de uma delas ou o seu? Hum... chato, né? Que tal ir num encontro de velhos amigos, da escola, ou da universidade, todos homens, e a mulher de um deles – ou a sua – resolver ir junto? Acaba a festa, né? E, que tal entrar num banheiro feminino e ter um homem por lá? Nossa! Aí já passa a ser imoral, se não tiver sido um equívoco do sujeito...
Mas, escutem mais essa: que tal precisar ir a uma “Delegacia de Mulheres” e encontrar apenas homens para lhe atender? Mas, seria possível isso? Afinal, é uma Delegacia “de Mulheres”, “para as Mulheres”, como é que ia ter um homem lá, para fazer o atendimento às mulheres? Não, não, claro que isso nunca poderia acontecer, é lógico. Aliás, seria ilógico!
Mas, na contramão da lógica, na Delegacia das Mulheres da Ribeira, os atendentes – quem recebe as mulheres, quem as escuta e anota suas queixas, quem escreve suas dores íntimas, quem decide e orienta o que deve ser feito – são homens! Uau! Que surpresa!
Pois, vou contar pra vocês. “Maria” (um nome fictício para uma história real – e que não é a famosa Maria da Penha) precisou ir a essa Delegacia mês passado. Precisou. Do verbo precisar. Ter necessidade, carecer, necessitar. Então, Maria precisava prestar uma queixa. Uma queixa, infelizmente, muito grave, ainda mais grave porque era contra seu cônjuge, o homem com que vivia.
Chegando lá, se depara com outro homem para lhe atender. Imagine como Maria ficou sem jeito, incomodada, ela, que já tinha dificuldade de contar as barbáries praticadas pelo cônjuge a outra mulher, agora era obrigada a contá-las a um homem, desconhecido! Que constrangimento! Além da própria dor, da vergonha íntima, agora mais essa humilhação a que era obrigada a se submeter...
Enfim, contou um pouco do seu drama, mas não tudo. Digamos que contou o principal. Após o que, recebeu a orientação “fabulosa”: dali a 12 dias deveria voltar para uma audiência com uma assistente social para uma tentativa de reconciliação. Como?! Reconciliar o quê? E ainda esperar 12 dias?! Mas, afinal, não ficou claro, em seu relato, que ela poderia ser morta, e estar morta numa dúzia de dias?! Senhor escrivão, talvez você não seja culpado de não saber interpretar a gravidade do assunto, afinal você nem é assistente social, nem é advogado, nem é mulher, ao menos... é apenas um escrivão, como poderia entender as particularidades de um tema como esse?
Bom, o que faz Maria? Volta para casa... onde corria risco de vida. Fazer o quê? Sorte dessa Maria, com aspas ou sem aspas, que ainda existam pessoas que a orientem: ela vai a uma Prática Jurídica de uma Universidade local (ainda bem que existem essas Práticas Jurídicas, muito boas por sinal). Lá, dizem: “Mas isso está errado, eles deveriam ter dado uma medida protetiva baseada na lei Maria da Penha – volte lá e peça isso.” Mas, segundo algumas organizações que trabalham com orientação e apoio às mulheres (que ainda bem que também existem, e que são de um excelente nível), “infelizmente a Lei Maria da Penha, no RN, só existe no papel, não funciona”.
E agora, Maria? Ah, Maria, espera os 12 dias... por certo... ou... Reza, Maria, para que nada lhe aconteça durante essa espera. Fugir de casa, se esconder, quem sabe?! Mas, para aonde, Maria? E como?
Bom, essa história não acaba assim, como tantas e tantas outras, mas vamos ao que interessa, agora: talvez vocês não estivessem tão perplexos diante desse quadro, se não vivêssemos num estado que tem uma governadora mulher, numa cidade administrada por uma prefeita mulher, enfim, que tem tantas políticas (vereadoras, deputadas, até uma senadora), e, paradoxalmente, uma Delegacia de Mulheres onde os atendentes são homens! Só posso pensar que ninguém lhes informou sobre o que acontece na Ribeira.
E aí, gente, ninguém vai tomar uma atitude, não? Ou todos vão esperar, quem sabe, alguém de sua família precisar da Delegacia de Mulheres? Ah, perdão, claro que isso não vai acontecer. Afinal, nós, da classe média – alta, baixa ou média – sempre temos amigos (ou dinheiro) que nos ajudam a resolver nossos problemas de um modo mais rápido e eficiente, com o mínimo de transtornos. Quem se importa afinal? [Ana Célia Cavalcanti]



PROSA
“Associam-se à minha alegria, mas não souberam associar-se de modo algum à minha dor.”
Italo Svevo
Argo e seu dono
VERSO
“Se fui aniquilada / por seu / maravilhoso amor / é difícil dizer.”
Napoleão de Paiva
“Se fui aniquilada...”

Um comentário:

  1. Não, Mário, a lei não só existe no papel, felizmente. Malgrado o despreparo na delegacia especializada aqui relatado, quando as denúncias conseguem chegar à justiça pública, as medidas são tomadas, sim. No Fórum Miguel Seabra, por exemplo, há oficiais de justiça que trabalham exclusivamente no cumprimento das determinações judiciais referentes à aplicação da Lei Maria da Penha. Vale informar isso, para que outras Marias, desanimadas com o atual estado de coisas, não continuem calando.

    Márcia

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