segunda-feira, 20 de julho de 2009

Da Paixão


A verdade, crianças, é que não existe vida fora de alguém apaixonado. Ao menos vida aparentemente digna de ser vivida pelos detentores e detentos da Paixão. A Paixão cativa, aprisiona, encarcera, escraviza, seduz, cega. Paixão com pê maiúsculo e tal. Dessas, de consumir dias, noites, madrugadas, invernos e verões, apetites e fastios, peles, músculos, ossos, de deixar os olhos fundos e o sujeito amofinado no fundo da rede. Com força só na ponta do dedão – um leve empurrão na parede, o suficiente pra uma carreira de embalos e balanços, a corda gemendo no armador, e tamos conversados. Que coisa bela é a Paixão não carece de descrever-vos. Todos vocês um dia foram apaixonados, uma ou muitas vezes – e se o são agora, neste momento, não no momento em que escrevo, mas no momento em que cada um de vós lê, que maravilha, sabem bem do que falo. E mesmo que não o sejam agora, sabem bem do que falo. Ainda que não no presente, essa Paixão com certeza os haverá surpreendido, um dia, no passado, quando também vós éreis apaixonados por alguém. Esqueçam a influenza A, B ou Z. Só não existe imunidade adquirida para a Paixão. É epidemia, pandemia, endemia e outras mias. “Sustentai-me com passas, confortai-me com maçãs, porque desfaleço de amor”, canta a mulher apaixonada nos Cantares de Salomão. Te vas a gastar el seso”reclamava a mãe de Florentino Ariza ao filho insone, mal rompia a manhã com o cantar dos primeiros galos, em “O amor nos tempos do cólera” de García Márquez. E acrescentava: “No hay mujer que merezca tanto.” Não confundir, claro, a palavra espanhola “seso” com o prosaico “sexo”. “Seso” são os miolos. Então, o que a genitora de Ariza recomenda ao filho é que não queime os miolos pensando demais, escrevendo demais, sofrendo demais. Porque, nesse estado de perdição que é a Paixão, o sujeito finda por enlouquecer – de Amor, outro nome para a Paixão. “Estou louco de amor, [...] perdi simplesmente a razão aos olhos dos outros”, explica Barthes em seu “Fragmentos de um discurso amoroso”, incorporando e dando voz ou ecoando a voz do sujeito enamorado que fala e diz coisas assim – como logo na abertura do primeiro capítulo: “Me abismo, sucumbo” – na verdade, palavras do jovem Werther, que Goethe achou por bem explicitar a associação e rima amor/dor já a partir do título, “Os sofrimentos do jovem Werther”, pois. O livrinho – avant-première do Romantismo – levaria, segundo a lenda ou a história, a uma série de suicídios entre seus leitores, todos eles provavelmente perdidos de Paixão, loucos de Amor, pela sua impossibilidade ou por sua ausência. Um século depois dos sofrimentos do jovem alemão, Rainer Maria Rilke viaja a Florença – como aliás, Goethe o tinha feito entre 1786 e 1788 – e, já apaixonado por Lou Andreas-Salomé, escreve um diário onde duvida da própria sanidade – “Se já estou suficientemente calmo e maduro para o iniciar o diário que pretendo passar às tuas mãos – não o sei. Sinto, porém, que minha alegria permanece impessoal e sem brilho, enquanto dela não participares como confidente”. Para, ao final, insistir na declaração e dependência: “Não és para mim uma única meta, és mil metas. És tudo, e sei que estás em tudo. E eu sou tudo, e te trago tudo indo ao teu encontro.” Pois, pois, pois, se o objeto da Paixão é única razão de viver, não haverá novidade em estar vivo: para o último encontro amoroso parte Romeu em busca do jazigo de Julieta. Leva nas mãos o que lhe arrumou o boticário em troca de quarenta ducados – “Eu não comprei veneno, comprei cura; / E bebo ao meu amor, na sepultura.”

Minha nossa senhora: lá vou eu falar em tragédias – tanto me assustei que, embalado como vinha, tive que ceder agora a um parágrafo. Pra respirar um pouquinho e procurar, quem sabe, qualquer história de Paixão com um final feliz. Vejamos essa: “E ele me deu a mão. Daquela mão eu recebia certezas. Dos olhos. Os olhos que ele punha em mim, tão externos, quase tristes de grandeza. Deu alma em cara. Adivinhei o que nós dois queríamos”... Não, não. Também essa história, estória, não tem final feliz, vocês sabem: Riobaldo e Diadorim. Mas é a descrição perfeita e sucinta da Paixão: “E eu gostava dele, gostava, gostava. Aí tive o fervor de que ele carecesse de minha proteção, toda a vida: eu terçando, garantindo, punindo por ele. Ao mais os olhos me perturbavam; mas sendo que não me enfraqueciam.”

É isso: a Paixão pode até amofinar, combalir, desassossegar. Mas quase sempre fortalece. Paradoxalmente. Inexplicavelmente.

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PROSA

“O senhor havia de conceber alguém aurorear de todo amor e morrer como só para um.”

Guimarães Rosa

Grande Sertão

VERSO

“Deixa o teu corpo entender-se com outro corpo.”

Manuel Bandeira

“A arte de amar”

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