sábado, 11 de abril de 2009

Adivinhe quem vem para o café-da-manhã: Demétrio Diniz

Demétrio Diniz se apresenta assim: poeta, autor dos livros “Um homem sem poesia”, “Passarás”, “Haveres” e “Ferrovia”. Natural do semi-árido de Alexandria.
E só.
Não me atrevo a acrescentar muito mais. Conheço pouco Demétrio, vejo-o raramente. E quando o vejo, está quase sempre com Tácito Costa e Napoleão de Paiva. Porta um bigodinho que lhe empresta ares de antanho, tem um olhar triste mesmo quando prestes a dizer uma broma, e um ar de quem cria passarinhos na gaiola, ou de quem cria gaiolas abertas sem passarinhos.
Todo esse abstracionismo da minha parte, simplesmente porque, infelizmente, não conheço bem a sua poesia – que dizem ser das melhores. Enquanto não reparo o erro, fiquem com o viajante inusitado Demétrio Diniz:


GUATEMALA, PASSAGEM PARA O MEDO
Ao fechar o quarto e ler as instruções de segurança coladas atrás da porta, não foi com os terremotos que me preocupei (o último grande matou 25 mil pessoas): “Mantenha a calma, proteja-se durante a emergência junto a uma coluna, embaixo de portas ou mesas.” O medo se concentrava em algo mais provável; era muito azar um terremoto naqueles poucos dias, mas o tambor de um revólver podia estar me esperando na primeira esquina. Já haviam, para minha surpresa, me avisado no Panamá: “Em Guatemala todo cuidado é pouco.”
Mas que se passa no país de poesia doce como a de Ak’abal? O que acontece com sua capital, Guatemala de Assunção, quatro estações regulares, cheia de árvores e muitas flores, clima aprazível, calçadas para se caminhar com cinco metros de largura?
A simpatia e a amabilidade do guatemalteco suspeito que logo desaparecerão, como aos poucos sumiu a cordialidade carioca: o batedor de carteira da Praça Mauá, romântico, musical, deu lugar ao trombadinha, e por último aos morros infestados de bazuca e AR-15. Um senhor com quem conversei na belíssima catedral de Santiago, concordou comigo, os olhos marejados: “É que não nos queremos, peleamos uns contra os outros, e deixarmos que morra nossa beleza.”
No entanto não foram propriamente os 36 anos de guerrilha responsáveis pelo atual clima de violência urbana, e sim uma corrupção generalizada, alto índice de desemprego, e a dominação de estruturas poderosas do narcotráfico, como a Zetas, oriundas do México e El Salvador. Jorge, o motorista de táxi, admirou-se quando lhe disse que no Brasil também havia corrupção – “e eu que pensava que era só aqui”. Corrupção e sua respectiva madrinha, a impunidade: um ex-ministro roubou quantia superior a 50 milhões de reais, passou sete anos foragido, e neste final de ano se apresentou a um juiz, cabendo-lhe tão só a punição de ficar em casa e assinar um livro às segundas-feiras. Nem cadeia nem restituição do butim.
Cidade de Guatemala vive uma justificada paranóia. No hotel em que fiquei aquartelado, com recomendação de não ir nem mesmo ao centro da cidade, conhecer a catedral e o palácio do governo, trabalham mais de trinta seguranças. Rara é a bodega, a livraria, o restaurante, o café, que não ostentem um ou dois guardinhas de cassetete na cintura e transmissor à mão. Marcou-me ver descarregar de uma Kombi velha uma caixa de rum: como fazem no Brasil as transportadoras de valores, uma escopeta engatilhada garantia a entrega.
O Centro-América, ao som de “reggaeton” e música haitiana, perde a batalha contra o narcotráfico, sendo comum nos jornais matérias acrescidas de neologismos como “narcomatança”, “narcosequestro”, “narcodesastre”. Roseli, a moça magrinha e bonita que recepciona no hotel, traçou com a habitual gentileza de seu povo um mapa seguro para mim: andar na primeira e segunda quadra ao redor do hotel. Fora disso só em shopping Center, e em táxi credenciado pelo hotel. Quase que lhe obedeci totalmente, não fosse um restinho de coragem de Alexandria.
Mas se é verdade que a vida não vale a pena se a alma é pequena (não faz mal que eu seja o bilionésimo a repetir os versos de Pessoa), os dólares que gastei, as muitas horas de vôo e a chateação da insegurança, se quitaram com os livros que encontrei de Ak’abal, trazendo na bagagem poema como este, aqui mal traduzido:
“Te vais?
– Ainda não.
– E por que estão feitas as malas?
Porque sou um viajante
e em qualquer momento
tenho que me ir
não só desta cidade
como também
deste mundo
– E de meu coração?
– Só se tu abrires a porta.”
Receio que a Guatemala de hoje seja uma cena aberta para a nossa realidade de alguns anos à frente. [Demétrio Diniz]



PROSA
“Viajar, num sentido profundo, é morrer.”
Miguel Torga
Diário
VERSO
“Viajar! Perder países!
Ser outro constantemente”
Fernando Pessoa
“Cancioneiro”

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