segunda-feira, 20 de abril de 2009

Em retalhos

Carlão de Souza, decano dos jornalistas deste Ryo Grande (ao menos os da minha quase geração) ligou dia desses, do Vale do Ceará-Mirim. A vida começa cedo no Vale quando Carlão está por lá. Parece que ele pega os jornais da semana e os lê todos de uma só vez (em especial este JH 1ª edição). Reclama, então, que a diagramação da coluna às vezes é confusa e tal. Fazer o quê? Na maioria das vezes os diagramadores acertam – em outras, andaram comendo até frases inteiras. Republico duas crônicas deste mês de abril onde aconteceram cortes, para o leitor não ficar sem entendê-las – agora, se o desentendimento persistir, aí o problema é deste escrevinhador, mesmo. (Quem quiser ler a coluna na net pode acessar www.embrulhandopeixe.blogspot.com)

MULHER SOLTEIRA PROCURA [em 16 do 04]
“Todas as minhas separações me deixaram tonta.” – ando ouvindo frases assim, e anotando frases assado. Quando consigo relembrá-las. Não sou um sujeito que anda com um caderninho de apontes na mão e um lápis grafite na dobra da orelha, como se via nos filmes de antão.
Não vou citar, claro, a autora. Até porque o que vale na frase é a sua universalidade. Ela poderia ser dita por qualquer mulher acima dos 30, 40 anos. Soaria um pouco sem sentido numa mulher de vinte, por mais separações tivesse ela vivenciado. Tem um quê de tempo percorrido, perdido e reencontrado em sua construção: “Todas as minhas separações me deixaram tonta.” – e você imagina e consegue enxergar sem esforço um olhar que vagueia pelas brumas mais ou menos densas do passado.
As feministas, talvez, queiram me crucificar, mas também não creio que a mesma frase vinda de boca masculina tenha o mesmo peso e força e intensidade. Soa quase inverossímil um homem, mesmo um daqueles sensíveis, alma feminina e tal, quiçá metrossexual, dizer, em voz baixinha, enquanto gira a colher na xícara de café: “Todas as minhas separações me deixaram tonto.”
Tonto o quê, caba? Só se mexeram no seu bolso, conta bancária, contracheque mensal.
Ao menos é o que mostra nossa vivência coletiva, preconceitos ou não embutidos. Um homem, quando se separa, lugar-comum, arruma logo outra. Quando não, antes. Uma mulher, quando se separa, fica mesmo assim: tonta. Perdida. Tateando na escuridão. Olha pra trás e começa a enxergar um vazio tremendo nunca antes percebido. Olha pra frente, e a paisagem é a mesma, uma planície vazia, silenciosa e entediante.
É clássica também a estatística: enquanto os machos empurram com a barriga, parte, por iniciativa das fêmeas, a ruptura final, dolorosa, mas decidida.
Por aqui, ribeyras do Putigy, minhas amigas quarentonas apontam um problema a mais – que pode também ser causa & conseqüência ao mesmo tempo: a ausência de homens, mesmo aqueles com agá minúsculo. Os interessantes (não sou eu, mas muitas delas que o dizem) estão casados; a outra metade é gay.
Parece que as mais novas, talvez pelo exemplo prático de mães e tias, resolveram o perrengue sem muito atropelo e com um tanto de objetividade: tá faltando macho? A amiga mais próxima se aproxima e tamos resolvidos. Ou resolvidas.

O ANEL [em 01 de 04]
Perdi meu anel nas mornas águas atlânticas de Porto Mirim, fim de tarde de sábado, maré cheia, ondas indo e vindo, ondeando meu corpo quase à deriva se não fosse a âncora invisível do crepúsculo.
Foi embora num adeus entusiasmado, num arco quase em câmara lenta, que partiu do anular e, no rumo do horizonte, mergulhou mar adentro.
É claro que mergulhei atrás dele, meu anel, que não era cravejado de brilhantes. Mas o mar o engoliu num instante e as águas eram escuras.
Eu não sabia que o perderia, senão não teria entrado com ele ao dedo. Nem como repentinamente alargou-se, ou foram os dedos que encolheram. Pensei logo na história de João, Maria e o rabo da lagartixa, com o suposto afinamento do meu “seu vizinho”, mão esquerda, mesmo lado do coração batendo no peito. Vocês hão de lembrar: abandonados pelos pais, João e Maria encontram a casa de doces da bruxa no seio da floresta escura. Comem a se fartar, os novos netinhos da vovó má, que os prende e cozinha para eles, todos os dias, saborosas refeições – e pede a prova da engorda no dedo que passa através das grades da prisão. Os irmãos se valem de um rabo de lagartixa, para iludir a bruxa com a falsa magreza, até o dia em que perdem o artifício e quase vão pra panela. O fim é clássico: a bruxa cai no caldeirão e implora – “Água meus netinhos” – ao que os pivetes respondem: “Azeite, senhora vó.”
(Como eram terríveis os contos de fada de antanho.)
Pois, meus dedos afinaram-se, sabe-se deus como. E lá o anel escapuliu. Ainda posso vê-lo, desenhando um arco no céu, literalmente um arco da aliança – ainda não sei entre o quê e quê, este pacto formado, que findou em perda e ausência, se entre o Céu e a Terra, ou entre Poseidon e Saturno, ou entre eu e eu mesmo, ou, ainda, entre eu e um outro eu.
Ainda vasculhei a maré baixa, os sargaços, as poças mínimas, como mínima a esperança de reencontrá-lo.
Supersticiosos como somos, haveremos de encontrar um símbolo para essa história que se misturou a um conto da carochinha. Já encontrei ao menos uma, no imaginário e sabedoria coletivos: vão-se os anéis, ficam os dedos.



PROSA
“Naquela manhã decidi que eu seria o acaso.”
Martín Caparrós
Valfierno
VERSO
“de súbito
sua lembrança noturna
sacode minha condição de só.”
Napoleão de Paiva
“sem nervos do amor”

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