quarta-feira, 8 de abril de 2009

Cascudo no teatro

Chato esse papo que santo de casa não faz milagre – e, em relação a São Cascudo, injusto até: ninguém mais milagreiro por aqui que o provinciano incurável, autor, também, – entre centenas de livros – da máxima “Natal não consagra nem desconsagra ninguém”.
Daí que, nenhuma novidade em saber que cabe a um diretor paulista levar o Mestre e Bruxo da Junqueyra Ayres aos palcos nacionais.
Vladimir Capella é o nome, é o cara, dramaturgo e diretor – e eu pego boa parte do que aqui vai escrito de uma entrevista recentemente publicada na excelente CartaFundamental, “a revista do professor”, extensão editorial da mais famosa e semanal CartaCapital. Ainda está nas bancas o número 6, março deste ano, R$ 3,50 apenas.
Capella deve estrear este mês, no Sesi de Sampa, “O colecionador de crepúsculos”, texto seu baseado em cinco contos dos cem recolhidos e fixados por Cascudo em “Contos tradicionais do Brasil”.
São eles “O compadre da morte”, “A velha amorosa”, “O marido da mãe d’água”, “A formiga e a neve” e “A madrasta”.
Os três primeiros correspondem, respectivamente e segundo a classificação adotada pelo folclorista, ao Ciclo da Morte, Facécias, e Contos de Encantamento. Já os dois últimos, ao menos com os títulos apresentados, não aparecem nas duas edições que tenho do livro.
Além dos contos, adaptados pelo autor a partir de oficinas de improvisação promovidas pela Secretaria de Estado da Cultura de Sampa, Capella usa aspectos biográficos da vida do nosso Ludovico, Luís, embora nem na entrevista nem no seu sítio na internet (www.vladimircapella.com) explique suas fontes. Curioso notar que Anna Maria Cascudo Barreto escreveu em 2003 uma fotobiografia sobre o pai com o mesmo título.
Noves fora a lacuna, o diretor é um entusiasta do potyguar – “Dizem que, se o Brasil for demolido, ele pode ser reconstruído por meio do ‘Dicionário do folclore brasileiro’, do Câmara”, explica ele, acrescentando: “Está lá, cada gesto, costume, comida. Ele se comunicava com o mundo todo sem sair de Natal, só por cartas. Era um profundo conhecedor do Brasil. A gente sabe mais da gente com ele.”
E faz uma comparação atravessada: se a grande fonte da humanidade é a mitologia grega, no caso específico do Brazil é seu próprio folclore o imenso manancial onde podemos matar nossa sede – e, em se falando de folclore verdamarelo, ninguém melhor nem maior que Cascudo, a quem presta reverência.
MENINO RUIM
Capella não é um diretor fácil, para não dizer polêmico: não acredita na divisão clássica que cataloga e classifica separadamente o teatro dito “infantil” ou “infanto-juvenil”:
“Sempre houve uma arte para crianças e uma outra, para adultos?” – pergunta, em artigo escrito há mais de dez anos. “O que dizer então das festas juninas de antigamente? Das quermesses, do boi-bumbá, dos vários folguedos populares que reuniam todos os membros da família numa mesma celebração? Crianças, adolescentes, pais e avós, cada qual a seu modo, conforme sua necessidade e interesse, desfrutando suas próprias descobertas. E tudo isso acontecendo num espaço único, dentro de um mesmo espetáculo.”
Para Capella, até os comícios de antão eram uma grande festa sem distinção etária, e o palanque o primeiro palco que viu ainda menino.
O tom polêmico não pára por aí: o autor não concorda que se deva isolar a criança da crua e cruel realidade, a fim de supostamente preservá-la das dores do mundo – “porque criança sabe o que é maldade e sabe que tem um monstrinho dentro dela”, afirma. “Ela sabe que não é boa. Quando a criança vai ao teatro e vê a bruxa fazer maldade, ela bota para fora os sentimentos dela. O teatro ajuda a criança a se aceitar como ser humano complexo que é.”
Os contos adaptados são significativos: “O compadre da Morte” é a história de um homem que engana duas vezes a Morte e na terceira é por ela enganada; “A velha amorosa” se apaixona por um homem bem mais novo que, incomodado pela paixão, a obriga a passar uma noite debaixo de chuva – a velha fica doente e morre; já “O marido da Mãe d’Água” é um pescador pobre que se arruma bem de vida com o casamento com a entidade e termina pobre ao renegar a mulher.
Cascudo dizia que o conto popular era o vértice de um ângulo a unir memória e imaginação popular, revelando não apenas informação histórica, etnográfica, sociológica, jurídica e social, mas também a capacidade criativa do povo, transmitida basicamente através da oralidade.
Primorosa sua explicação para tanta jovenzinha de cabelos longos e soltos nas fábulas, que pescou de Oliveira Martins: “Pela cabeça se conhecia o estado: a virgem vai ‘in capillos’, a esposa ‘cum touca’”.
Anna Maria Cascudo anotou em seu “O colecionador de crepúsculos”:
“No colo de papai, na praia de Areia Preta, minhas canções de ninar foram desafios de violeiros. Ouvia contos populares, historias de Trancoso, e muitas ‘histórias’ de Pedro-Perna-Santa e Chico Preto, pescadores que eram fontes para papai e cujas narrativas me empolgavam, semelhantes à ficção científica.”
Se hoje em dia as crianças não podem ter o privilégio, de certo modo comum à época, de ouvir essas narrativas da boca dos parentes, das babás, das pessoas comuns do povo, resta ao Teatro, além dos livros, prover essa lacuna indispensável ao desenvolvimento do imaginário infantil, da criança e, futuramente, do adulto.
A peça de Capella deve permanecer até junho no Sesi – bem que a governadora e a prefeita, nessas viagens ao Sul Maravilha podiam dar uma espiada, e, quem sabe, trazer o espetáculo para este Ryo Grande.



PROSA
“O Rei dos Peixes mandou um tubarão engolir o rapaz e uma baleia engolir o tubarão e foi para o fundo do mar.”
Câmara Cascudo
Contos tradicionais...
VERSO
“Eu faço um choro baixo
para no alto não chegar”
Chico Antônio
“Sabiá”

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