segunda-feira, 13 de abril de 2009

Apesar de tudo é Páscoa

“Apesar de tudo é Páscoa” é o vídeo que Ferzan Ozpetek, cineasta nascido na Turquia mas cidadão italiano, realizou em homenagem às vítimas do terremoto dos Abruzos, centro da Itália. Dedicado à Alessandra Cora, o vídeo vem se somar a outros, mais ou menos famosos, entre eles o do também cineasta Mimmo Calopresti.
O vídeo de Ozpetek é simples: costura as imagens de prédios, escombros, ruínas, sob a voz e o corpo de Alessandra cantando em inglês, num estúdio de gravação. A música é alegre, pop, dançante, com ecos de soul music. Alessandra é jovem, parece ainda mais menina. Séria, enquanto canta, se move animadamente e com suingue diante do microfone de estúdio. Se percebe como é feliz e orgulhosa de estar ali, gravando. Uma espécie de Malu Magalhães italiana. Tinha 23 anos. Foi uma das quase 300 vítimas do terremoto.
Ozpetek escreveu num jornal italiano como foi visitar o lugar:


AQUELE OVO DE PÁSCOA, “APESAR DE TUDO”
“Estive muitas vezes nos Abruzos. Tenho muitos amigos ali. Meu médico, Guido, que vive em Roma, é de lá.
A última vez, foi em setembro, para a exibição de um filme meu, e o encontro com o público. A visita à ‘Accademia dell'Immagine’ [Academia da Imagem], uma noite de outono transcorrida em grande harmonia, um jantar consumido entre muita conversar e vinho tinto, depois, a volta a Roma, depois de ter encontrado novos amigos: Gabriele, Mercedes, Annamaria. Agora, chegando à cidade, a primeira impressão é que, surpreendentemente, não mudou muita coisa. Esperava ver a dor e o desespero nos rostos das pessoas. Mas não é assim. A atmosfera é de expectativa. As pessoas com quem cruzo não sorriem, mas não são nem menos ostensivamente tristes. Gabriele, que me acompanha juntamente com Carlo, me diz que, no momento, não podemos entrar em L'Aquila. Não se pode passar de canto algum, tudo é blindado. Conseguimos chegar onde, hoje, estão expostos os caixões das vítimas. Alguns têm em cima outro pequeno caixão branco. Pais e filhos. Tenho vontade de chorar, mas não choro, qualquer coisa de mais forte me impede.
Seria o único. Porque ao me redor estão muitas pessoas, e nenhuma chora. Não consigo respirar. Quero me afastar dali. Enquanto esperamos a permissão para entrar em L’Aquila, voltamos para o carro. Chegamos ao epicentro do terremoto: Onna. Gabriele me diz que na Academia da Imagem existe um documentário feito ali, antes do terremoto. Começo a percorrer a cidade acompanhado pelos bombeiros. Vejo desolação, vejo destruição. Vejo um lençol amarrado usado para escapar de uma janela, como alguém que foi obrigado a fugir da própria casa. Vejo uma cama sob os escombros. Os automóveis esmagados, os portões arrancados, quadros e fotografias espalhadas. Passa por mim um velho que caminha com dignidade junto ao filho de 40 anos. Traz nas mãos uma grande foto emoldurada, em preto e branco, dos seus pais. Parece acabado, o velho, mas não chora. Está deixando a cidade, talvez pela última vez. Se afastam graves, mas também eles sem lágrimas. Também eles, fortes.
Diante da igreja de Onna enfileiraram as estátuas de santos recuperadas do edifício que está desabando. Cada estátua foi coberta por um lençol branco. Uma casa está completamente rachada. Por entre as paredes que caíram se vê as montanhas brancas, o céu azul. Tudo parece parado. Me dizem que agora temos permissão de entrar em L'Aquila. As imagens daquele dia de setembro voltam à minha cabeça, e sinto medo de rever os lugares onde estive. A cidade está completamente vazia, apenas pouquíssimas pessoas nas ruas, para recuperar, se possível, objetos e bens familiares. Caminham normalmente, parecem impassíveis, não demonstram sua dor. Parece uma cidade depois de uma guerra, bombardeada.
Uma loja exibe queijos e salames na vitrine. Uma confeitaria está decorada para as festas, com doces e ovos de Páscoa. Vejo a igreja na praça do Domo, ainda em pé, e pergunto a Carlo se não foi danificada. Ele me responde que sim, e, realmente, basta que me movimento um pouco para ver que está toda destruída. Apenas a fachada permaneceu intacta. Em pé, ainda cheia de dignidade. Penso que as pessoas que encontrei hoje também estão assim. Não demonstram a dor, escondem-na dentro. São como esta fachada aparentemente íntegra, e, por trás, por dentro, devastadas. São fortes e comportam-se gentilmente com quem encontram.
No campo de refugiados, duas mulheres conversam. Foram à Caritas pegar algumas roupas. Comentam o ocorrido, dizem que nunca pensaram em encontrar-se naquela situação. Suas palavras são cheias de pudor e dignidade. Dou uma olhada no interior de uma tenda. Uma senhora, em trajes íntimos, está ocupada arrumando suas coisas, buscando ordem na precariedade. Por um instante nossos olhares se cruzam, e, sem que me diga uma palavra, me faz sentir vergonha, por eu estar violando seu espaço.
Mais longe, vejo um enorme ovo de chocolate. Nele está escrito: ‘Apesar de tudo... Boa Páscoa’. Não sei se as promessas feitas pelos políticos nestes dias serão cumpridas. Mas sinto, percebo hoje, que o povo dos Abruzos, com a sua tenacidade, com a sua força, encontrará o modo de recomeçar, de repartir, de reconstruir.Mais tarde, no retorno, começo a sentir os primeiros sinais de fraqueza. Seguro as lágrimas e a tristeza é ainda mais forte agora, que estou deixando tudo pra trás. Chego em casa e sinto que tudo ao redor tem um outro peso, uma outra cor.
Ligo o celular. Entre outras, recebo uma mensagem do meu amigo médico. Diz: ‘Um beijo forte e carinhoso, ainda que encoberto pela tristeza’.” [Ferzan Ozpetek]



PROSA
“Todo mundo é capaz de dominar uma dor, com exceção de quem a sente.”
Shakespeare
Muito barulho por nada
VERSO
“Dor é vida. Se vivo é porque sofro e sinto.”
Jorge de Lima
“XIV Alexandrinos”

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