sábado, 6 de dezembro de 2008

Adivinhe quem vem para o café-da-manhã: Isabel Vieira

Lá pras tantas Isabel Vieira se auto-denuncia como uma das muitas “forasteiras” que nos invadiram a praia, nos últimos anos. Jornalista, autora de livros juvenis, essa paulista, diria eu, é uma das que não incomodam, pelo contrário – basta conferir seu interesse pelo Ryo Grande e em especial pela sua Capital. Interesse, como vocês verão, que vai muito além da água-de-coco. Para saber mais sobre a escritora dêem uma espiada em seu sítio: www.isabelvieira.com.br.
MOVIDA A ÁGUA-DE-COCO
A primeira coisa que me encantou em Natal foi a luz. A claridade, a luminosidade, o céu azul. Eu, que antes só enxergava da janela uma nesga de nuvens cinza entre um mar de prédios – e aviões chegando e saindo de Congonhas, sem trégua –, me vi numa cidade de amplos espaços abertos, o céu azul-anil, à tardinha azul-cobalto, à noite todo estrelado, a lua surgindo atrás das dunas, pura prata, esbanjando luz.
Depois foram as cores, cheiros, sabores. Graviola, caju, melão, mangaba, abacaxi transparente de tão doce, mangueiras carregadas, buganvílias subindo pelos muros, perfume de jasmim. Um tapete cor de maravilha cobre a calçada da casa de Lídice... O que é isto?, pergunto, fascinada. Flores de jambo que caem das árvores, me explicam. Eu não sabia que a “morena cor de jambo” era dessa cor.
Charles me mostra a tábua de marés, e a turista apressada, nascida em Santos, tantos verões em Ilhabela e Guarujá, vai descobrindo os ritmos da natureza, o vai-e-vem das ondas, as fases da lua, os pores de sol. Érida me ensina que as dunas filtram a água do mar e a transformam em lagoas; que tarefa delicada! Natal é uma cidade onde se pode observar a natureza da janela de casa.
Ok, agora todos já sabem. Faço parte da leva de paulistas que chegou a Natal nos últimos anos para morar. Vocês devem estar cansados de ver tanto forasteiro invadindo sua praia, tanto prédio subindo, tanto carro engarrafando o trânsito, tantos sotaques pelas ruas: carioca, gaúcho, mineiro, paranaense, catarinense; sem falar nos estrangeiros... Mas vocês têm certa culpa pela invasão. Quem mandou tratar tão bem os visitantes?
É um lugar onde, desde o primeiro dia, me senti em casa. Marcelo e Patrícia abrem as portas de Pirangi. Ângela apresenta o Parque das Dunas e o pôr-do-sol no rio Potengi. Roberto fala sobre Cascudo e os escritores da terra. Emanoel e Edilena nos acolhem na pracinha do Alecrim, que parece cenário de novela. Cafés, almoços, conversa boa, casas de praia...
Desacostumada a essas gentilezas, temo ter sido indelicada com alguns – desculpem! --, até por falta de treino, pois venho de uma selva onde não se costuma visitar ninguém sem avisar nem partilhar uma refeição não planejada. Nos percalços da metrópole, é comum ficar meses ou até anos sem ver os amigos -- não estou exagerando, podem acreditar.
Este cenário físico e humano me tomou de tal forma que, quando vi, já o havia trazido para A Balada da Lua Azul (ed. Salesiana, 2007), o primeiro livro que escrevi em terras potiguares, para leitores jovens. Os personagens se movem ora em lugares reais, batizados com nomes fictícios, ora em locais fictícios situados em pontos geográficos reais – quem os conhece saberá distingui-los na ensolarada Natal.
No meu processo criativo, o cotidiano interfere de forma inesperada: às vezes, algo que ouvi na véspera surge da fala de um personagem; outras, o clima da cidade se impõe, exigindo mudanças na trama já estruturada. Assim foi com os livros anteriores, gestados na agitação de Sampa e no frio de Campos de Jordão. Assim foi com a Balada...
Até porque, nos caminhos para escrevê-la, encontrei pessoas que mais me foram enlaçando à terra. As jovens enfermeiras que me confiaram suas experiências se fundiram numa personagem. As lições de Bioética da professora Raimundinha se impregnaram na trama, passada entre o hospital e a praia. No sebo de Vera e Jácio resgatei a trajetória de uma figura que viria a merecer um capítulo à parte: o doutor Januário Cicco, um homem à frente do seu tempo, um visionário.
Dá pra imaginá-lo sobre as dunas, sob o sol ardente, vistoriando a reforma que transformou a casa de praia do governador Alberto Maranhão num hospital de dezoito leitos, o atual Onofre Lopes – isso em 1909, quando Natal era um lugarejo insalubre, habitado por dez mil almas? Na época, Januário já pensava em saneamento básico. Foi o primeiro médico da América Latina a escrever sobre um tema polêmico e maldito: a eutanásia. Aqui está seu livro, pouco conhecido Brasil afora: Euthanasia-- novella scientifica, editado pela Fundação José Augusto, numa reprodução fac-símile da original, de 1937, da editora carioca Irmãos Pongetti.
Há muito mais a falar sobre Januário Cicco, figura que me cativa, como outras desta terra: Nísia Floresta, Auta de Souza, Cascudo, o aviador francês Mermoz... É questão de tempo me debruçar sobre elas. Já troquei o cafezinho pela água de coco e acostumei o ouvido aos nomes sonoros que me conquistaram: Capim Macio, Alecrim, Camurupim, Pium... À sombra dos cajueiros, sigo buscando conhecer melhor suas vidas. O que não falta em Natal são boas histórias para contar. [Isabel Vieira]



PROSA
“A nossa Memória deveria ter limites, como outras funções fisiolóicas.”
Câmara Cascudo
O tempo e eu
VERSO
“Lar é de onde se vem.”
T. S. Eliot
“East Coker”

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